segunda-feira, 18 de março de 2024

O silêncio dos corações


Nem tanto pelo encanto da palavra, mas pela beleza de se ter a fala. 
Renato Teixeira

A impressão é que tanto ruído busca esconder o que se passa lá dentro da gente. Isso todo tempo desde sempre. A ânsia de encobrir o verdadeiro entorna o caldo e complica as histórias espalhadas na amargura do passado insistente. Espécie de intolerância a si mesmo, o ser humano abandona o silêncio e invade a paz que haveria de haver não fosse qual quer. Nisto o Amor preserva seu território no coração, e deixa acontecer o desespero até os extremos do extermínio total do equívoco nas criaturas, quando, afinal, elas render-se-ão no altar do sacrifício do ego, pobres seres inanimados de possibilidades esquecidas.

Houvesse cordialidade qual sentido das ações e contaríamos outras lendas harmoniosas de tantas palavras renovadas, e o instante tornar-se-ia doutra versidade. As oportunidades cresceriam da dor ao equilíbrio, quando, só então, dormiríamos em outros universos. Porém isto significa o segmento natural a que nos vemos agarrados, buscadores contumazes de sonhos por vezes adversos.

As aventuras bem representam esses papeis desconexos que temos de realizar nas tentativas e nos erros. Cadernos do rascunho das horas que andam amarfanhados às nossas mãos. Enquanto que o coração nem assim fica quieto e grita seus gestos através das artes, dos espetáculos em ação a cores vivas, no território dos gestos. As trilhas sonoras deste momento seguem firmes nos registros arcaicos e nas manifestações dos sentimentos. Tal força propulsora do motivo entre os seres, artífices da humana evolução, compõem os quadros das civilizações e deixam rastros às portas do Paraíso.

A voz que vem da alma passeia nas esculturas, nas praças e nas florestas. Contam todos os segredos que os aceitaremos lá um dia. Gradualmente tudo acontece ao sabor do mistério tenebroso que arquiteta o futuro de tudo quanto há.

domingo, 17 de março de 2024

As palavras e os pensamentos


Nesse plano abstrato em que se vive, somos tais instrumentos do que percorre os pensamentos, estes fornecidos continuamente pelas palavras que circulam soltas pelo ar nos setores de tempo. Equilibrados, pois, entre o que foi e o que será, tangemos a nós mesmos à busca da compreensão do que estamos fazendo aqui.

Enquanto isso, as palavras trazem a força dos sentidos e indicam aos pensamentos formas variáveis de constantes valores, mudanças no ânimo e na sorte. Seremos, assim, autores e protagonistas que exercem a função na dupla condição de criar e existir.

Nisto, aferrados a esse chão de matéria, seres abstratos, padecemos naquilo que não pudermos contribuir através dos pensamentos em movimento. Por mais desejemos imperar diante desse mar de variações, apenas sustentamos o processo vida a cada momento. Sujeitos de nossas expectativas, testemunhamos as consequências daquilo que ora criamos.

A meio deste universo onde habitamos, mantemos o senso de, lá um dia, revelar a nós mesmos o lugar preciso aonde prevalecerá a paz que tanto desejamos.

O significado de todo pensamento chega sorrateiramente aos sentimentos e vivemos esse caudal que o Tempo traduz às gerações. Ainda que restritos no espaço diminuto dos indivíduos, persistimos pelo empenho de acalmar os pensamentos e usar com clareza as palavras que nos façam evoluir através do conhecimento interior.

Aqueles que obtiveram êxito nessa aventura de se auto-encontrar quantas vezes regressam, pelos livros, depoimentos, explicações, no entanto tudo a depender da nossa consciência de compreender e criar nossos próprios métodos. Elas, as palavras, permanecem dentro de nós a formar pensamentos e sentimentos. Porém somos quase que restritos a esperar o dia exato de dominá-las e ser o que tanto aspiramos. Existir contém esse dom de vencer as agruras e superar os limites, até a definita salvação, e divisar o Infinito.

sexta-feira, 15 de março de 2024

Sussurros da outra margem


Tantos são os testemunhos de experiências místicas, viagens astrais, mergulhos na sorte, no entanto haverá permanentemente o que saber depois de tudo ora guardado nessas ruínas. Dias constantes de buscas e interrogações, inclusive frutos imediatos das urgentes necessidades, dos impasses e das dúvidas. E vamos seguindo sórdidos sem outra alternativa justa senão tocar de vez nos anseios de universos além deste sem que nele possamos penetrar. Aonde ir além da realidade exterior que já comprime a bolsa das eras e responde só parcialmente às percepções dos humanos?

Somos nós mesmos esses quais cativos e senhores a percorrer os mistérios a nossos olhos, nas dúvidas que prevalecem todo tempo, que sustentam a natureza do que somos. Bem isto, essa angústia que nos invade e que demonstra o íntimo plano sacrossanto de sermos todos numa magistral evolução.

Pois no trilho invisível entre Tudo e Nada deslizam as caravanas de um deserto silencioso. Buscam-se nas entranhas o romper da ilusão e obter os domínios da alma, porém no uso de meios adrede disponíveis e profanos. Por mais distantes sejam umas das outras as possibilidades, ainda que diante de um eterno que agoniza, insistimos ser autores do querer a todo custo divisar as praias do infinito de uma certeza através de passos vacilantes e sobrecarregados de cascalhos inúteis.

Assim, no sequenciar destes parágrafos, tocamos as chances inigualáveis de, num instante fértil, distinguir do escuro a claridade, da sombra que padecemos a Luz que libertará, isto nos campos abertos da Consciência.

As coleções


Desde criança que houve em mim disposição para colecionar alguma coisa, talvez por influência de amigos, parentes, mas lembro dessa tendência de reunir e guardar, com especial apego, flâmulas, chaveiros, caixas de fósforo de propaganda, selos, quadros de fita de cinema, estampas do sabonete Eucalol, postais, até chegar nos livros e discos, as manias atuais e persistentes.

Imagino mesmo que por essa fase passaram muitos de minha geração; passaram ou nela permaneceram, chego a admitir.

As primeiras coleções que alimentei guardava escondidas debaixo de sete capas, na cômoda em que ficavam também minhas roupas. Representavam algo de secreto, tesouro precioso de acesso só individual. Esperava sempre, quais acontecimentos felizes, a surpresa de novas aquisições, que, de raro em raro, apareciam através de um amigo, um primo, de perto ou de longe.

Os quadros de fita de cinema mexeram forte com minha imaginação, pois representavam relíquias valiosas do que ocorria dentro das salas de projeção, retrato fiel de atores e cena. Em Crato, nesse tempo (primeira metade da década dos anos 60), existiam outras pessoas que também se dedicavam a reunir os pedaços de celulose que sobravam das quebras das fitas, nos cinemas que existiam à época (Cassino, Moderno e Educadora). Deles, lembro de Temóteo Bezerra e Chico do Moderno, que possuíam os melhores acervos de quadros de filmes famosos, os mais caros e procurados. 

O ímpeto colecionativo cresceu de intensidade quando divisei os selos, quadradinhos coloridos, viajados nas cartas, que traziam o magnetismo de outros e distantes lugares, mundos diferentes, misteriosos. Esse apego cresceu quando conheci os selos estrangeiros, dos quais formei coleção de quase um milhar, todos carimbados, sem mancha ou defeito. Estrangeiros, porque assim acrescentavam a certeza de virem de outras terras bem longínquas, outras línguas.

Demorava horas e horas a mergulhá-los em bacia de água limpa para lavar, em seguida repousando-os entre as páginas de dicionários para secarem, quais seres vivos, num verdadeiro ritual que justificava o sonho das coleções.

Somei o gosto pelos selos ao das estampas de Eucalol, do tamanho dos sabonetes que acompanhavam nas caixas de três unidades. Minha mãe fazia feira na mercearia de Antônio Primo, na rua Santos Dumont, e éramos atendidos por José Primo, seu irmão, que depois viria a ser meu colega, no Banco do Brasil. Zé Primo conseguia com outros fregueses as estampas, que eu colecionavam com zelo e possessividade.

Também formei um álbum de figurinhas de países, trajes típicos e bandeiras, tudo isso no segmento da coleção de selos, querendo desse modo aprofundar o conhecimento sobre povos.

Um dia abusei dos selos, quando comecei a namorar, aos treze, quatorze anos. Notei que eles viraram concorrentes das horas que rarearam no meio das obrigações da escola e das namoradas, porquanto pediam atenções próprias.

Belo dia, numa atitude radical, permutei toda a coleção por apenas um único vidro de perfume, investimento imprescindível às conquistas amorosas. Décadas, e os selos estrangeiros a mim retornariam, vindos de amigos de outros países, porém escolhi passá-los a meus filhos, querendo despertar neles a paixão pelas coleções que me colheram logo na primeira infância.

quinta-feira, 14 de março de 2024

Os lugares nos sonhos


Qual o que falam da força que têm alguns pontos da Terra, espécie de energia diferente, vemos nos sonhos as histórias acontecerem onde nem imaginávamos de ali regressar outras vezes, pois estivéramos antes. Nisso, a impressão que fica será de que estamos vivendo noutra realidade mais real do que esta, e que a realidade mesma é a dos sonhos e não a cá de fora. Isto pela notória percepção de viver-se com intensidade bem maior, mais nítida, naquilo. Depois, ao acordar, sentimos ainda o poder que existe naqueles lugares, naquelas ocasiões vivenciadas.

Neles, nos sonhos, encontramos pessoas que há tempos não encontrávamos. São exercícios de uma outra noção, a realizar trabalhos, vivenciar situações imprevisíveis logo depois desfeitas ao romper daquelas horas.

Um momento ímpar este de cruzar a barreira da vigília e mergulhar nesse outro estado mental aos olhos de um novo senso de consciência semelhante ao processo criativo da Arte, donde advêm roteiros diferentes do que estamos acostumados a experienciar. Num processo de construção dos mínimos detalhes, surgem esses todos, nascidos dessa outra dimensão onde viajamos nos braços da criatividade, a não dizer do mistério invisível do Ser em si, vivente de tantas interrogações. Decerto os sonhos significam bem isto, uma parcela das abstrações das maravilhas que nos cercam todo momento, seja nas locações, nas companhias, nas histórias. Nós, tais parceiros internos dos segredos do Universo, dispomos a cada instante do valor da intuição, mergulho certo aos mundos imprevisíveis aos olhares comuns das circunstâncias.

quarta-feira, 13 de março de 2024

Íntimos esteios


Aqui perto de onde moro, na encosta da Serra do Araripe, em Crato, passa um riacho, afluente do Rio Grangeiro, que cruza o Cariri indo desaguar no Rio Salgado lá bem abaixo. Quando chove, as águas do pequeno rio ficam a murmurar horas inteiras, a falar com a mata numa linguagem decerto compreensível entre eles. Mesmo assim me aventuro querer interpretar alguns pedaços dessa conversa e aproveito a mergulhar dentro de mim, na busca de sentido naquilo do dizer das águas em movimento. Qual falou Olavo Bilac de quem escuta as estrelas (Ora (direis) ouvir estelas. Certo, perdeste o senso!...), ainda assim me arvoro da certeza de escutar um pouco que seja do que dizem as águas que descem da serra ao mar e compõem seus próprios versos.

Noto da fala o quanto, em volta desse universo dagora, nas tantas situações que mutilam de dor a raça humana, nestes tempos de notícias apressadas de violência pelo mundo, quase que, mais que vozes, as lembranças gritam de uma humanidade primitiva que guerreia por terra e pelos ares, numa fome deslavada de poder e de agruras, durante as eras que se sucedem e deixam a dever instantes de amizade e paz.

Ouço, no murmúrio das águas que fogem dos desencontros que tomam de conta da História e da ferrenha competição em busca dos lugares que lhes caberiam no Chão, não fosse a indústria das armas e os sinais de poderio econômico que prevalecem constantemente. A vontade que haveria de haver, numa outra direção do juízo, de unir os sonhos e realizar os sentidos bons da Criação aos nossos olhos.

Isto é, ouço a mim que ferve de notícias insistentes dos lamentos que dominam e tangem o rebanho ao pasto dos dias, quais meros valores de mercado em profusão. Aos poucos, no cessar da chuva e do transcorrer das horas, o riacho adormece, talvez na esperança de deixar nalgum canto avisos de coerência aos espíritos que, desavisados das ocupações mais insistentes, hajam sido ouvintes fieis de suas lágrimas que agora correm silenciosas.

(Ilustração: Reprodução da Web).

terça-feira, 12 de março de 2024

Ensaios perenes


Primeiro, as pedras, as paredes das cavernas. Depois, os papiros, o couro de animais, o papel rústico. Mais adiante, as cartas, os livros, as revistas, os jornais. Depois, com as máquinas de gravar, os disquetes, os cds, dvds, pendrives, hds. E essa vontade monumental de conter o fugidio. A ânsia que tem a beleza de permanecer, se eternizar na memória do tempo que conservamos dentro da gente durante mais alguns dias. Essa fome de continuar. Desejo de perpetuar nas vidas o que escorre pelos séculos feito nuvens que riscam os céus e derivam no Infinito.

Enquanto isto, a lindeza das manhãs, dos finais de tarde, as flores, os animais, as paisagens esplendorosas que compõem o cenário fabuloso dos lugares. Isto sem querer contar aquilo que transcorre na alma dos apaixonados, das crianças, dos pais, dos artistas, tudo a preencher de leveza o cruzar dos firmamentos.

Nalguma vez pensei o que haverá de riqueza ao descobrirem uma máquina de gravar os sonhos, mesmo que haja necessidade dos cortes daquilo que fira, que doa, que destoa, qual fazem hoje na montagem dos filmes. Mas, de certeza, será o clímax de um novo cinema. E bem possível que seja, pois já gravam os sons, as batidas do coração, o fluir da circulação, a sinfonia das estrelas, etc.

Nisso, eis que surgirá o valor de preservar os mistérios da vida que passa numa velocidade constante, sem a mínima intenção de fazer-se eterna, conquanto já o seja, ainda que nem disso percebamos em toda sua intensidade. A História, em seus momentos, impactos, crises, no entanto, careceria de revisões periódicas, visto nascer das ações humanas tantas vezes impensadas, rudes, prenúncios de agonias.

Que assim seja, nalgum momento aonde possamos assegurar a grandeza dos instantes sem a angústia do que esvai e machuca de saudade a sumir no desfazer, sem que nada afirme que regressarão. A escrita, de quando em vez, padece, pois, desse desengano, no que pese o empenho dos autores de fazer perene o que nos toca de quanta pureza e paz, a luz que clareia viver.